sábado, 5 de março de 2011

TRAVESSIA

A TRAGÉDIA
Ou da Travessia.


NOITE

PARTE 1


FREDER PAZ (Intranquilo, ele está no alto do navio, ao lado do mastro das bandeiras. O tempo está
sombrio; venta muito.)

   Venta!, como os espíritos desejo pairar nas altitudes!
   Venta! Liberta-me da ciência; pedra muda dos rudes.
   Nessa masmorra escura a sofrer a miséria,
   Drogas, essências sutis, e toda química bebida.
   Tanta filosofia, com esforço e disciplina, tive lida:
   Para encontrar-me tão sábio? Instruído? autêntica bactéria!
   Dúvida? Escrúpulo? De tudo já dei cabo,
   Não supero em saber um tolo escravo.
   De dinheiro, quase não ganhei nada,
   Nem o gozo do mundo. Em seus doces prazeres,
   Envolvido estive em livros pela biblioteca abarrotada.
   As traças sabem mais de meus lazeres
   Que a carne ruma dum velho bolorento.
   Que busca explicar nesse momento?
   É esse o meu mundo! chama-se a isso um mundo!
   Cerca-me o fumo e o lodo, tive má sina.
   Só ossos vejo, e esqueletos, e pó!
   Olha o brilho eterno das estrelas,
   E aprende da Natura a alta ciência.
   Com forças de tua alma e das belas,
   Busca dessa travessia a altíssima influência.
   Respondei-me, se me ouvis, respondeis!!

(Freder tenta em vão acender um cigarro, contudo o vento é mais forte. Ele desce a escadaria.)

   Ah esse quarto é um claustro, um alfarrábio
   Que invade-me e me domina os sentidos.
   Procuro sozinho em meio a tanta tempestade,
   Não temer naufrágio, essa calamidade!
   Impiedoso sopra o que me domina e envolve,
   Há sombras que o sentido não dissolve;
   Bailam nervosas em redor
   Na pele sinto certo temor.
   Revela-te! Mostra-te!
   Mesmo que eu perca minha vida para ver-te.

(Surge o Espírito vindo dos fundos.)

FREDER PAZ
   Mas que visão temível!
   Não consigo olhar-te, é inacreditável!

ESPÍRITO
   Chama-me para isso.
   Digo-vos, não estas em melhor estado.

FREDER PAZ
   Devo temer-te, figura infernal?

ESPÍRITO
   Deixas-te o orgulho, ainda crendo-te genial?
   Achas-te de nós, Espíritos, um igual?

FREDER PAZ
   Sim sou eu, Freder Paz, certo teu igual!

ESPÍRITO
   És igual ao espírito que és!
   Jamais semelhante a mim.

FREDER PAZ
   Igual a quem serei então?
   Vens-te a mim e deixa-me em vão?
   De que serve-me não ser-te como ti,
   Errante alma que verve; pedante aqui.

(Soa o trinco da porta.)

   Desgraça! Quem perturba deve ser o Amigo Justos,
   Bem agora e com tal brutalidade, pegaste-nos em sustos
   Que o espírito infernal logo se fez ausente.

(Justos, com uniforme amassado e desalinhado entra com o colete na mão. Freder vira-se com impaciência.)

AMIGO JUSTOS
   Julguei que estivesse só, a declamar.
   Em dia feriado, ausentes, resta-nos reclamar?

FREDER PAZ
   Aquilo que não sentes, não deve pleitear ao cabo!

AMIGO JUSTOS
   Dá-me um tempo, ao meu mudo julgado.

FREDER PAZ
   Tira a melhor parte desta lição:
   Deixas de ser um modesto assistente!
   Usas da arte toda perfeita munição;
   Se tens algo sério, se dês por contente!
   Da humanidade as coisas fúteis curam
   Que nos tapetes do chão os seus cantos murmuram!

AMIGO JUSTOS
   Peito e cabeça me doem; o meu sofrer prolonga!
   Preciso beber uma química, sem mais delonga!

FREDER PAZ
   Está no pergaminho essa fonte sagrada.
   Que a nossa sede de beber à alma draga.

AMIGO JUSTOS
   Perdoa-me. Poder não há mais doce agrado.
   De um sábio o conceito apreciar o presente.

FREDER PAZ
   Marchando assim atingirá as estrelas! O Ente,
   Amigo. Do passado as coisas muito belas vela
   O Espírito da verdade que o tempo projeta; zela.
   Está na alma do homem que a interpreta
   Um monte de detritos pleno de impureza;
   Um ótimo enredo e máximas pragmáticas,
   Iguais as das marionetes, populares, práticas!

AMIGO JUSTOS
   Desvendar o mundo! Do homem a alma é a fé!

FREDER PAZ
   Quem pode dar as coisas o nome neste mundo?
   Das celebridades lhes interessa um lixo imundo!

AMIGO JUSTOS
   Daqui ficaria por mim a conversar,
   Mas o Velho Tripulante insiste em me chamar.
   Amanhã já da Páscoa, aproveitando a vinda,
   Um cognaq ali, desviamos nós na berlinda!
   Aceitas tu? Para alegrar?

FREDER PAZ
   Suspendamos por hoje. É hora de parar.

AMIGO JUSTOS
   Muito já sei, porém, almejo bebê-lo todo.

FREDER PAZ (só)
   Nesse seres assim nunca cessa a dança.
   E a matéria tem sede incansável,
   Quando estava com o Espírito da esperança,
   Surge a humana voz infatigável!
   Agradeço, no entanto, o brusco rompimento,
   Fez-me sentir o que sou: um pobre sarnento.
   Acreditava ser a imagem de Deus;
   O espelho fiel da vera Eternidade.
   Do peso da matéria logo dizendo adeus,
   Vendo-me liberto na próxima Posteridade.
   Já gozava os divinos e etéreos devaneios,
   Os prazeres do céu e seus altos anseios,
   Contanto a visão mostrou-me a verdade:
   Sair do navio, alcançá-lo, não terei capacidade!

   Jogaste-me assim em jaula, um pobre mortal,
   Em condição humana atroz; humilhante, sem igual!
   Quem me dará lições? Agora, que temer?

   O mar corta o curso da vida, às vezes, radical!

   Anseia as coisas muito altas, nossa alma.
   Se alcanças, nesse mundo, os bens na palma,
   Logo lanças mão, e tudo vira engodo e desilusão!
   Aos puros sentimentos; às belezas da vida atoa,
   Ferozes sentimentos, a fantasia abre as asas e voa.
   Vendaval que desfaz as venturas e a bonança,
   O abismo se esconde; se abriga na lembrança.
   E da vida perturba o sossego e o prazer;
   Sempre com novo drill a fazer sofrer.
   E aquilo que perdes-te, em lágrimas, deplora!
   Não sou de Deus a imagem, sinto-o agora.
   Pareço mais um verme, e no pó vivo imundo.
   Que do pó se alimente e nele sempre ao fundo!

   O mar corta o curso da vida, às vezes, radical!

           (Freder volta a sua atenção para a estante em sua cabine, entre eles um pano sujo e uma bandeja.)

   Essa pilha de troços em que nada falta,
   À esse mundo de traças, tanto me vinculas?
   Exceção de um ou outro, viver peralta;
   Sem estar contrafeito, onde nada anulas!
   Teu cérebro, como o meu, outrora divagava,
   E almejando a verdade, em erros navegava.
   Coberto de mistérios em plena luz,
   Nunca revelou o que a alma seduz,
   Arrancar-lhe não pode com tais instrumentos,
   Servir-vos vou com os teus excrementos!

   Amanhã já serão o antigo! Não me valem de abrigo!
   Melhor com poucos bens a vida gozar,
   Que viver a suar, com essa carga imprestável; indesejável,
   Sempre coisas a carregar!

   O mar corta o curso da vida, às vezes, radical!

                              (Freder observa uma ânfora de cristal, que contém pó de barata.)

   Por que atrai meus olhos, ao longe, esse objeto?
   A fascinar o olhar e a luzir com vigor,
   Qual estranho magneto, voraz fulgor?

   Tu, que há muito conténs uns soros infernais,
   Concede ao senhor a tua doce essência.
   Olho e tal a dor por encanto se vai,
   E sinto-me a embalar nas ondas do alto-mar.
   Vejo-me em voo de chamas que evocais,
   O espelho vaga aos meus pés a brilhar.

   Seguro-te nas mãos, suave paz na alma.
   Das esferas longínquas a magnificência.
   Ah, que vida sublime! Ah, que prazer divino!
   Como um verme que sou não mereço o infinito?

   Olho a terra ao longe,
   Dou-lhe as costas como um monge,
   Audaz e sempre aflito Ocidente,
   Agora, sou o teu mais nobre crente!
   Que a Humanidade a morte não tem porque temer,
   Nem deve amedrontar-se ante esse vácuo escuro,
   O calor aumenta; as catástrofes sempre vão acontecer.
   Piso a entrada, o caminho é certo, aos bons, seguro.
   Retiro-me da peça antiga e patriarcal
   Que há tantos anos vive dominada
   Pela corja pseudo-cultural.

   Faz-me assim lembrar toda orgia patrocinada,
   Da indústria dos teus velhos amigos,
   Que sempre fomenta os louvores antigos.
   Conténs letal bebida a ser tragada
   O derradeiro brinde à Alvorada.

                                  (Aproxima dos lábios a taça com o pó de inseto. Ouvem-se sinos e o canto de um coro.)

CORO DOS ANJOS
   Tripulante levanta da miséria mortal!
   Recupera-se e ressurge, deixa de ser boçal!

FREDER PAZ
   Escuto aos bons anjos da nova esperança?
   Ou seria qualquer outro alarme da segurança?

CORO DAS MULHERES
   Com essências preciosas o untamos no Spa,
   Escutes essas puras; somos as musas de lá!
   Sejas tu, tigre ataque, e ressuscitas!

FREDER PAZ
   Esse canto da vida em mim refaz o gozo!
   Volto dum Sabbat, sublime e estrondoso!

CORO DOS JOVENS DISCÍPULOS
   Senhor! Senhor!
   Mestre, o cabeça, agita aos que tem aflição,
   Trazemo-vos de volta para vossa missão:
   Senhor! Senhor; servir, servir.

FREDER PAZ
   Essa reunião retoma os bons divertimentos!
   Da rapaziada em festa; no calor da janta.
   Alegria do lembrar, com pueris sentimentos,
   Da gasolina à mesa, numa sede que espanta!
   A lágrima rebenta; o mundo não abandono!







DENTRO DO RESTAURANTE DA TRIPULAÇÃO


Saem itinerantes de todos os tipos.


JOVENS TRIPULANTES
   Por que seguir esse caminho incerto?

OUTROS
   Vamos à sala de jogos aqui bem perto.

OS PRIMEIROS
   Preferimos seguir em direção à lavanderia.

UM JOVEM TRIPULANTE
   A ponte é bom passeio e bem mais agradável.

OUTRO TRIPULANTE
   A saída na gangway está intransitável.

OS SEGUNDOS
   Mas o que fazer então?

O TERCEIRO
   ... pelo mesmo caminho.

O QUARTO
   Vamos ao bar onde tudo viceja,
   Às mulheres e a única cerveja.
   Disputa a valer, vamos! podem crer.

O QUINTO
   Rapaz folgazão e um tanto amalucado.
   Três vezes nesse burgo antes fosse surrado!

UMA CAMAREIRA
   Não! não desembarcarei, e já, para cidade.

OUTRA CAMAREIRA
   Na certa conseguiremos junto àquela sonsa.

A PRIMEIRA
   Esse só vem junto a ti e assim sempre pernoita.
   Na festa todo tempo a dançar contigo, sua afoita!

UM RECEPCIONISTA
   Raios como essas moças vão tão apressadas!
   Vamos! Sigamos as suas pegadas.
   Com uma cerveja e um bem forte tabaco
   Uma tripulante assim, eis o meu grande fraco!

UMA JOVEM STAFF
   Bem melhor companhia existe aos tais,
   Entretanto preferem deitar com as serviçais.

SEGUNDO RECEPCIONISTA
   Atrás vem outras mais, não apresse o passo!
   Uma delas conheço e já a tenho no laço.

O PRIMEIRO
   Vamos! Perdes a caça assim com essa imperícia,
   São bem finas dormindo ao fazer a carícia.

UM OFICIAL
   Não me agrada esse novo comando.
   Que deténs no navio, por todo o mando?
   Devemos como nunca agora lhe obedecer?
   Deve aos peixes logo, logo esse vai descer.

UM TRIPULANTE DA LIMPEZA
   Senhores bondosos, senhoras formosas,
   Da minha limpeza ficai amistosas.
   E não permitais que em vão vos implore,
   Meu trabalho na máfia, por favor, não ignore.
   Abri-me vossas cabines me dando a propina;
   Minha limpeza bem feita que logo termina.

OUTRO OFICIAL
   Não há nada melhor que nos feriados
   De guerras e combates falar aos chegados.
   Embora na Líbia, ao longe, em mil embates,
   Os árabes se estraçalhem, aos rebates.
   Navio olhando ao longe, deslizando vais,
   Mas logo na Tunísia, aportamos no cais!
   Bendiz então a paz, guerra não mais!

UM TERCEIRO OFICIAL
   Sim! Bravo vizinho, assim me apraz.
   Quebrem eles cabeças; seus árabes estilos,
   Contanto que em meu lar tudo esteja tranquilo!

UMA VELHA SECURITY (dirigindo-se a uma jovem staff.)
   Como ela é formosa, vais assim graciosa!
   Quem não haverá de amá-la e promover-te?

A MOÇA STAFF
   Toma o teu tento ao lançar-me o teu flerte,
   Vista! é o meu futuro esposo que passa em frente.

OFICIAIS DE ALTO CLERO
   Em noves navios com festa e ceias,
   Mocinhas em belas e altivas meias,
   Bem doce são dadas á toda conquista
   No que nos mantém no alto da listra.
   Iremos dançar, a vida gozar!
   Soberanos e donzelas vamos subjugar!
   E assim os de raia sobem e vivem,
   Vamos irmãos! Mulher sempre tem.

FREDER E JUSTOS


FREDER PAZ (descrevendo o surgir do Continente Azul)
   Os degelos dos Alpes de repente,
   Deixa o velho inferno, extenue; decadente.
   Formam-se verdejantes e extensos prados;
   As cores rebentam, em poesia, ao vosso lado!
   Contempla a Natura em toda imensidade,
   Observa ao longe deixar a brutalidade,
   Surgem os instruídos e ávidos cidadãos,
   Em liberdade festejam-vos, longínqua evolução!
   Das ruas, muito estreitas, em becos apertados,
   Pelo rio navegam, movem-se apressados!
   Nas nevoentas montanhas coloridas,
   Alegre, o rico exulta toda a bela vida!
   Aqui me sinto bem! Perspectivas seguras me vem!

(tripulantes festejam sob as mesas.)

AMIGO JUSTOS
   Contigo conversar, meu caro professor,
   Constitui um prazer e grande honraria.
   Mas é justo dizer, falta-me uma grosseria!
   O ruído infernal só falta enlouquecer,
   Chama-se a isso alegria, algum prazer?

(tripulantes próximos ensaiam a dança da janta.)

   Todos dançam essa aberração
   Mãos pro alto, mãos pro chão!
   E a galera ohh uoho!
   E a jovem viçosa com ar travesso,
   Logo da mesa dos pais, nos vê do avesso!
   Em círculos rodam, recuam, avançam,
   À esquerda, à direita, todos dançam.
   Com braços levantados, pulam ofegantes,
   E a galera ohh uhooo!
   Não sejas comigo impertinente,
   Dessa cena ridícula, façamo-nos ausentes!

LACERDA O VELHO TRIPULANTE
   Alegra-me aos ursos, vos vê-los nessa mesa,
   Posso com vos juntar-me, sem mais surpresa!
   No meio a tal balbúrdia de tanta ovelha,
   Tomem um pouco da mais fina botelha!
   Um brinde vos faço, à nossa alma espelha,
   Cada uma das gotas, dele que vos sorver,
   Seja um ano mais de vida, para nos beber!

FREDER PAZ
   Aceito o puro vinho ardente, que inebria,
   Retribuo e agradeço os votos com alegria.

(os outros tripulantes se reúnem em círculo.)

LACERDA O VELHO TRIPULANTE
   Como é agradável que agora estejais,
   Feliz entre nós, livre do mal de mar que passais!
   Cerce cortando o embrulho, seasic sempre eminente,
   São Salvador salvou nosso male tão evidente!

TODOS
   Saúde a esse homem experiente e ébrio,
   Que longe nos leva em teu doce provérbio!

FREDER PAZ
   Curvai-vos ante aquele Ente que do alto,
   Envia-nos socorro a todo sobressalto.

(Afasta-se com Justos.)

   Subamos mais além junto àquele espreguiça dor,
   Fumemos ali, traduzindo em vento o nosso langor.
   Orava voltar ao Azul, não o poder tanto lamentava.
   Com desespero e suspiro, à tal crença me apegava!
   Meus pais, pessoas de bem, porém inseguras,
   Quimeras, ilusões, coisas vãs que me asseguras!
   Quase sempre de alunos; adeptos cercados,
   Com as refeitas receitas, à muitos dedicados!
   Às drogas diferentes tentava erradicar.
   E ambos em lampejos, chamas imigrar.
   E assim fizemos nós inalando drogas infernais,
   Por todos esses campos e montanhas e mais!
   Secaram, se finaram, e hoje sem pesares,
   Volto ao Azul! pros meus almejados lares!

AMIGO JUSTOS
   Por que em vão te angustias com tanta ansiedade?
   Se, em toda a juventude, ao teu pai sempre honraste?

FREDER PAZ
   Feliz é ti, amigo Justos, em esperança ainda acredita.
   Do mar, em desengano, de alegria ainda cita.
   Fazei com que essas horas plenas de ventura,
   Não se cessem assim por qualquer aventura!
   Olhai com fulgor o sol já no poente,
   Euro e prata à jorrar em torrente.
   Nada perturbará essa travessia às alturas,
   Abrem-se enfim, o mar, as enseadas mais puras!
   Desperta em mim um ímpeto de açoite;
   Antes de mim o dia, atrás a noite!
   Sonho que deslumbra enquanto o sol se extingue,
   Enquanto sobre nós, no espaço azul, serás bilíngue.
   Um albatroz abre as assas com voejar errante,
   No horizonte procuram pela pátria distante.

AMIGO JUSTOS
   Também já tive outrora as tuas visões,
   Jamais senti, porém as tuas aflições.
   Andava farto, da América, ver florestas, campos, vinhas,
   Nem invejo do pássaro o se librar nas assas das rinhas.
   Eflúvio vigoroso, caro Freder, o corpo mesmo presencia,
   Quando em terra, qualquer seja, encontramos nossa mulher macia.
   Desce o céu sobre ti, te envolve como o bom Chianti!

FREDER PAZ
   Falas assim porque só tem uma ambição!
   Procuras sempre das outras se apartar,
   No corpo há duas almas em competição,
   Alguma delas, dias desses, irá me matar.
   Uma rude me arrasta aos prazeres da Terra,
   Outra ascende, nos ares; pelos espaços erra.
   Quisera magia possuir, em regiões distantes existir!

AMIGO JUSTOS
   Não chameis esse bando!
   Do norte vem alguns afiados,
   Do oriente vem outros a mando!
   De pulmões motores trabalham sempre minguados.
   Por que ficais assim do horizonte a fitar?
   O que nesse poente atrai o teu pesar?

FREDER PAZ
   Não vês acaso ao longe um albatroz negro a voar?

AMIGO JUSTOS
   Não o dei maior valor.
   Muitos ali tendem sobrevoar.

FREDER PAZ
   Olhai-o com atenção, que animal te parece?

AMIGO JUSTOS
   Julgo ser um pássaro negro, ao mar sobrevoar.

FREDER PAZ
   Enxerga-o melhor, em espirais a voltear,
   De nó se aproxima ou se afasta sem mitigar.
   O seu rastro tem fogo!

AMIGO JUSTOS
   Não vejo nada além de um pássaro, talvez do Togo?

FREDER PAZ
   De perto, parece-me ainda mais armar a cilada.

AMIGO JUSTOS
   E o vejo ansioso; em voltas engraçadas.

FREDER PAZ
   O círculo estreitou, de nós está mais perto!

AMIGO JUSTOS
   Vês apenas o pássaro, não há fantasmas ao certo!

FREDER PAZ
   Aproxima-se de nós! Está aqui! Aqui!

AMIGO JUSTOS
   É um pássaro meio louco, voando por aí.
   Está a pescar radiante,
   Se algo vem ao mar, o agarra num instante!

FREDER PAZ
   Companheiro, creio que tens a razão;
   Não há na espessura; alvorada, qualquer tensão.

AMIGO JUSTOS
   Pássaro assim tão educado,
   Até mesmo por ti, há de ser estimado.
   Merece tua afeição o quanto antes,
   Tão bom imitador das nossas tripulantes!







NA CABINE 1821

Ainda gabinete de estudos.



(Freder entra; o albatroz o segue.)


FREDER PAZ

   Quando sigo à cela 1821, lúgubre e estreita,
   Gosto sinto daquela que me abre em clave.
   Entre!, oh novo animal que me espreita.
   Vais com calma!, algoz ave, sem mais entrave!
   Por que há de a nascente estancar de repente?
   Ficando dessa angústia, escravo eternamente?
   Verte-la hei para língua que ainda não existe!
   Saia!, toda sombra que se forma em riste.
   Aos sobrenaturais tesouros todos desvendar,
   É impossível tão alto o verbo assim a estimar?
   Preciso d`outra forma traduzir, à linha reluzir!
   A inteligência só, tudo cria e destroça,
   O Espírito luz, dessa terra somente esboça.
   Mas não é de ave essa criatura!
   Eu te dominarei terrível figura.

(Uma mancha escura verte sobre o teto e some pelo exaustor do banheiro. Freder senta-se prostrado numa cadeira arredondada sobre os uniformes.)

ESPÍRITOS (do lado de fora. No corredor.)
   Aprisionado está um dos nossos agora.
   Estrebucha a sofrer, o velho lince apavora!
   Tomai toda atenção!

   Voai pelo exaustor, voai em pleno ar.
   Acima e para baixo, do deck escuro o libertar,
   Livrai-o da prisão!

   Convém se precaver,
   A cilada antever!

   Muita ajuda outrora ela nos fez,
   Vamos recompensá-la, um pouco, desta vez!

FREDER PAZ
   A enfrentar esse horrendo animal,
   Uma fórmula farei sem mais igual:
   Traça a arder,
   Casal Garcia a perecer,
   Cognac a se estorcer,
   E pó de barata sofrer!

   Desses quatro Elementos,
   Não se aplacam jamais
   Os entes infernais!

   Queimai na seda
   Traça!
   No vinho te derrama,
   Casal Garcia!
   Brilha repentina,
   Cognac!
   Incubus! Incubus!
   Surge e encerra como pó e barata!

   Estranho animal, repousa muy tranquilo,
   É um ser sem igual, sobrevoaste o rio Nilo?

   És tu, oh! Selvagem e feroz companheira,
   Fugidia do inferno, eterna e verdadeira?
   Pelos céus derramada,
   Vilmente trespassada?

   Para dentro do exaustor fugiste num instante.
   Voltas! Que aos pés do mestre vais assim triunfante!
   Não esperes com orgulho,
   Bate à porta e vens ao mergulho!

                      (Aos poucos se desfaz o delírio negro. E Catarina, batendo à cabine, aparece vestida em uniforme andarilha.)

CATARINA HELM
   Por que tanto alvoroço?
   Em que posso servir o mestre ao gosto?

FREDER PAZ
   Eras tu em ave que me inspirava terror?
   Tripulante promíscua! O caso é para rir!

CATARINA HELM
   Saúdo-te ao agrado, meu caro sedutor.
   Já me fizeste suar até aqui me por!

FREDER PAZ
   Como te chamas, em verdade, dizei?

CATARINA HELM
   A pergunta é vulgar.
   À quem despreza o verbo, é só se empenhar.
   No âmago das coisas me tenha!
   No que há do exterior, abandona!; desdenha.

FREDER PAZ
   No mundo que habitas, senhorita, a natureza
   Dos seres se conhece em nomes, com certeza.
   Aqui no navio tanto faz,
   Te chamo Belzebu, Demônio ou Satanás!

CATARINA HELM
   Sou parcela do Além,
   Corpo que cria o mal, também faz o bem!

FREDER PAZ
   Que dizes com palavras dúbias, libertina?

CATARINA HELM
   Estou aqui a vagar para impor-te à sina.
   Em tudo aquilo que te chamas pecado,
   Constitui meu efeito natural, uma seiva atrelada!
   Eu sou a parte da parte, ao todo me domina,
   Sou parcela do caos, de onde nasceu a luz,
   Da matéria me faço, em todo esse corpo que te seduz.
   Muito não durará, suponho, essa miragem,
   Se queres me vou, dessa tua estalagem!

FREDER PAZ
   Lanças-te com furor ao pequeno e imperfeito.

CATARINA HELM
   Verdade a dizer, bem pouco o tenho feito.
   Embora eu venha há muito a matar e a investir,
   Não pude, aos pobres, com tais forças me promiscuir.
   A matéria maldita, homens e animais,
   É difícil tratá-los todos como iguais!
   Da umidade, do seco, ou do frio e calor,
   O mundo continua, de nada serve o tal amor.
   De meu tudo teria em especial agora!

FREDER PAZ
   O punho frio do Diabo em gosto de amora!
   Oh!, pequena singular de caos misteriosa!

CATARINA HELM
   Devemos sobre isso conversar, noutro encontro, ainda amorosa.
   Posso agora ir? Devo então retirar-me?

FREDER PAZ
   Acabas de chegar vinda aqui procurar-me.

CATARINA HELM
   Permaneço ainda mais, porque sair não me é capaz!

FREDER PAZ
   Como pudeste embarcar, se te inspira esse langor?

CATARINA HELM
   Contempla-me bem de perto. Sente-me nesse calor.

FREDER PAZ
   Isto é obra do acaso, algum engano ao certo.

CATARINA HELM
   A ave bem o sabe onde impõe o cedro!
   Livre estou para entrar, no sair estou sujeita.

FREDER PAZ
   Quer dizer que no inferno há também direitos?

CATARINA HELM
   O que te prometer, gozarás sem limites!
   Não devemos expor assuntos em través,
   Falaremos depois, outros meios no convés.
   Deixe-me seguir sem mais entraves!

FREDER PAZ
   Quero ainda escutar alguma novidade.

CATARINA HELM
   Deixa-me sair depressa. Eu voltarei depois.
   Gozarás mais tarde, no que nos for só dos dois!

FREDER PAZ
   Bem o sabes não te armei essa peça.
   Se te agrada ao cabo, vais depressa.

CATARINA HELM
   Se assim te satisfaz, também estou disposta.
   Da arte que conheço, entretem ver-me às costas!

FREDER PAZ
   Entendo muito bem e te dou liberdade
   Contanto que a tua arte, a mim, deleite e agrade.

CATARINA HELM
   Terás, se com inteligência, sem a rude atividade,
   Uma prazerosa convivência, lhe darei em caridade.
   Sentirás tu! Em teu olfato essências muito puras,
   Também, o teu paladar, chuparás mil doçuras,
   Vibrará todo o teu ser em doces sensações,
   Estaremos juntos, partilhando das tensões!

ESPÍRITOS (cantam suavemente)
   Dispersai-vos, oh escuras nuvens pelas alturas,
   Isso não é um novo treino que se afigura!
   Contemplamos a graciosa, nesse Azul deliciosa,
   Do Éter majestoso será o gozo!
   Em tantas impuras brilhem os sóis,
   Entes espirituais também sois vós!
   Esvoacem nos homens teus devaneios,
   Se librem nos céus, clamam-te aos anseios!
   Pelas vestes brilhantes; laços flutuantes,
   Desfilem nos convés, assim deslumbrantes,
   Onde muitos se engraçam,
   Os amantes se arrastam!
   A bebida a preparar; e ao cair no lagar,
   Escorrem marolas de vinhos espumantes,
   Deixai-vos lamber, prazeres e doçuras, em vos ter!

ESPÍRITOS (ainda cantam suavemente enquanto Freder adormece.)
   Deliciam-se as aves, com néctares suaves.
   Sobre as ilhas envoltas; nas ondas revoltas
   São, do tripulante, a mais doce ilusão!
   As que dançam louvamos; em surdina amamos.
   Depois em liberdade, dispersam-se em ansiedade.
   Outras águas fervem nas lagoas adoráveis,
   Amoras amoráveis!
   Uma graça!, dos céus aos mares!

CATARINA HELM (vendo-se impedida de sair pelo encanto grave.)
   Ressonam, muito bem, meus delicados falantes,
   Vós o encantastes logo, meus doces errantes!
   Pelo concerto devo-vos os regalos mais finos
   Logo subo à torre, para encontra-los aos pinos!
   Fazei voejar, em Freder, sonhos deliciosos,
   Da mágica romper, os empeços ardilosos!
   Preciso ter de vos, ratos, leais contribuições,
   Soem por teus falantes estas retas lições:
   Ordena-te que sais de teu esconderijo,
   O quero em Gibraltar, no portal e rijo!
   E junta nessa soleira, em óleo bem untada,
   Mãos à Freder, à paz bem preparada!
   E agora quer dorme, digo-te “até logo”!

FREDER PAZ (despertando)
   Fui mais uma vez iludido e logrado?
   De espírito, a falta, enfim se dissipou.
   Em sonho fez-me ver, diabólica embarcada,
   Em ave negra também, afinal, se livrou!
   Rumo ao Azul chegar!
   Logo descerei em Gibraltar!




...
Venta!, como os espíritos desejo pairar nas altitudes!

Os degelos dos Alpes de repente,
Deixa o velho inferno, extenue; decadente.
Formam-se verdejantes e extensos prados;
As cores rebentam, em poesia, ao vosso lado!

Nessa masmorra escura a sofrer a miséria,
Drogas, essências sutis, e toda química bebida.
Tanta filosofia, com esforço e disciplina, tive lida:
Para encontrar-me tão sábio? Instruído? autêntica bactéria!


Amanhã já da Páscoa, aproveitando a vinda,
Um cognaq ali, desviamos nós na berlinda!
Aceitas tu? Para alegrar?


E assim fizemos nós inalando drogas infernais,
Por todos esses campos e montanhas e mais!
Secaram, se finaram, e hoje sem pesares,
Volto ao Azul! pros meus almejados lares!


Enxerga-o melhor, em espirais a voltear,
De nó se aproxima ou se afasta sem mitigar.
O seu rastro tem fogo!


                                    A enfrentar esse horrendo animal,

                                    Uma fórmula farei sem mais igual:
                                    Traça a arder,
                                    Casal Garcia a perecer,
                                    Cognac a se estorcer,
                                    E pó de barata sofrer!

                                    Desses quatro Elementos,
                                    Não se aplacam jamais
                                    Os entes infernais!

                                   Queimai na seda
                                   Traça!
                                   No vinho te derrama,
                                   Casal Garcia!
                                   Brilha repentina,
                                   Cognac!
                                   Incubus! Incubus!
                                   Surge e encerra como pó e barata!

     Estranho animal, repousa muy tranquilo,
     É um ser sem igual, sobrevoaste o rio Nilo?

     És tu, oh! Selvagem e feroz companheira,
     Fugidia do inferno, eterna e verdadeira?
     Pelos céus derramada,
     Vilmente trespassada?

                                 Para dentro do exaustor fugiste num instante.
                                 Voltas! Que aos pés do mestre vais assim triunfante!
                                 Não esperes com orgulho,
                                 Bate à porta e vens ao mergulho!



  - carrossel encantado, Marseille, França.

LACERDA O VELHO TRIPULANTE
   Alegra-me aos ursos, vos vê-los nessa mesa,
   Posso com vos juntar-me, sem mais surpresa!
   No meio a tal balbúrdia de tanta ovelha,
   Tomem um pouco da mais fina botelha!
   Um brinde vos faço, à nossa alma espelha,
   Cada uma das gotas, dele que vos sorver,
   Seja um ano mais de vida, para nos beber!

(os outros tripulantes se reúnem em círculo.)

LACERDA O VELHO TRIPULANTE
   Como é agradável que agora estejais,
   Feliz entre nós, livre do mal de mar que passais!
   Cerce cortando o embrulho, seasic sempre eminente,
   São Salvador salvou nosso male tão evidente!

TODOS
   Saúde a esse homem experiente e ébrio,
   Que longe nos leva em teu doce provérbio!



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